Sunday, September 28

.
.
.
Le magicien, 1952
.
.
Você nunca conhece realmente as pessoas. O ser humano é mesmo o mais imprevisível dos animais. Das criaturas. Vá lá. Gosto de voltar a este tema. Outro dia apareceu uma moça aqui. Esguia, graciosa, pedindo que eu autografasse meu livro de poesia, "tá quentinho, comprei agora". Conversamos uns quinze minutos, era a hora do almoço, parecia tão meiga, convidei-a para almoçar, agradeceu muito, disse-me que eu era sua "ídala", mas ia almoçar com alguém e não podia perder esse almoço. Alguém especial?, perguntei. Respondeu nítida: "pé-de-porco". Não entendi. Como? "Adoro pé-de-porco, pé-de-boi também". Ahn... interessante, respondi. E ela se foi apressada no seu Fusquinha. Não sei por que não perguntei se ela gostava também de cu de leão. Enfim, fiquei pasma. Surpresas logo de manhã.
.
.
Les mois des vendanges, 1959
.
.
Olga, uma querida amiga passando alguns dias aqui conosco, me diz: pois você sabe que me trouxeram uma noite um pé-perna de porco, todo recheado de inverossímeis, como uma delicadeza para o jantar? Parecia uma bota. Do demo, naturalmente. E lendo uma entrevista com W. H. Auden, um inglês muito sofisticado, o entrevistador pergunta-lhe: "O que aconteceu com seus gatos?" Resposta: "Tivemos que matá-los, pois nossa governanta faleceu". Auden também gostava de miolo, língua, dobradinha, chouriços e achava que "bife" era uma coisa para as classes mais baixas, "de um mau gosto terrível", ele enfatiza. E um outro cara que eu conheci, todo tímido, parecia sempre um urso triste, também gostava de poesia... Uma tarde veio se despedir, ia morar em Minas... Perguntei: "E todos aqueles gatos de que você gostava tanto?" Resposta: "Tive de matá-los". "Mas por quê?!" Resposta: "Porque gatos gostam da casa e a dona que comprou minha casa não queria os gatos". "Você não podia soltá-los em algum lugar, tentar dar alguns?" Olhou-me aparvalhado: "Mas onde? Pra quem?" "E como você os matou?" "A pauladas", respondeu tranqüilo, como se tivesse dado uma morte feliz a todos eles. E por aí a gente pode ir, ao infinito. Aqueles alemães não ouviam Bach, Wagner, Beethoven, não liam Goethe, Rilke, Hölderlin(?????) à noite, e de dia não trabalhavam em Auschwitz? A gente nunca sabe nada sobre o outro. E aquele lá de cima, o Incognoscível, em que centésima carreira de pó cintilante sua bela narina se encontrava quando teve a idéia de criar criaturas e juntá-las? Oscar, traga os meus sais.
.
.
.
Hilda Hilst, in jornal Correio Popular, Campinas, São Paulo, 1.III.1993
.
.
.
.

Sunday, September 7

.
.
. Hendrick ter Brugghen. Héraclitus, 1628
.
.
.
E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!…
.
.

Le pont d'héraclite, 1935
.

.
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!…
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,
E olho para as flores e sorrio…
Não sei se elas me compreendem
Nem sei eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.
.
.
.
Alberto Caeiro

.

.

.

Tuesday, April 15

.
.
.

La Victoire, 1939

.
.

Sur mes cahiers d'écolier Sur mon pupitre et les arbres Sur le sable sur la neige J'écris ton nom Sur toutes les pages lues Sur toutes les pages blanches Pierre sang papier ou cendre J'écris ton nom Sur les images dorées Sur les armes des guerriers Sur la couronne des rois J'écris ton nom Sur la jungle et le désert Sur les nids sur les genêts Sur l'écho de mon enfance J'écris ton nom Sur les merveilles des nuits Sur le pain blanc des journées Sur les saisons fiancées J'écris ton nom Sur tous mes chiffons d'azur Sur l'étang soleil moisi Sur le lac lune vivante J'écris ton nom Sur les champs sur l'horizon Sur les ailes des oiseaux Et sur le moulin des ombres J'écris ton nom Sur chaque bouffée d'aurore Sur la mer sur les bateaux Sur la montagne démente J'écris ton nom Sur la mousse des nuages Sur les sueurs de l'orage Sur la pluie épaisse et fade J'écris ton nom Sur les formes scintillantes Sur les cloches des couleurs Sur la vérité physique J'écris ton nom Sur les sentiers éveillés Sur les routes déployées Sur les places qui débordent J'écris ton nom Sur la lampe qui s'allume Sur la lampe qui s'éteint Sur mes maisons réunis J'écris ton nom Sur le fruit coupé en deux Dur miroir et de ma chambre Sur mon lit coquille vide J'écris ton nom Sur mon chien gourmand et tendre Sur ces oreilles dressées Sur sa patte maladroite J'écris ton nom Sur le tremplin de ma porte Sur les objets familiers Sur le flot du feu béni J'écris ton nom Sur toute chair accordée Sur le front de mes amis Sur chaque main qui se tend J'écris ton nom Sur la vitre des surprises Sur les lèvres attentives Bien au-dessus du silence J'écris ton nom Sur mes refuges détruits Sur mes phares écroulés Sur les murs de mon ennui J'écris ton nom Sur l'absence sans désir Sur la solitude nue Sur les marches de la mort J'écris ton nom Sur la santé revenue Sur le risque disparu Sur l'espoir sans souvenir J'écris ton nom Et par le pouvoir d'un mot Je recommence ma vie Je suis né pour te connaître Pour te nommer Liberté
.
.
paul elouard, 1942
.
.
.
.

Sunday, March 23

.
.
.
. Le Double Secret, 1927
.
.
.
Eu me construo e ergo,
peça a peça
De saudade, vagar e reflexão.
.
.
.
Vitorino Nemésio, in Eu, Comovido a Oeste
.
.
.
.

Friday, March 7

.
.

. La Mémoire, 1948
.
.
.
Je remplace la mélancolie par le courage, le doute par la certitude, le désespoir par l'espoir, la méchanceté par le bien, les plaintes par le devoir, le scepticisme par la foi, les sophismes par la froideur du calme et l'orgueil par la modéstie.
.
.
.
Lautréamont, in Poésies I
.
.
.
.

Sunday, February 17

.
.
. Les Misanthropes, 1955
.
.
.
(...)
Les blés à côté de la colline formaient un choeur de millions de voix suaves, chaque tige ayant son chant propre, accordé avec tous les autres. La terre sous ces blés psalmodiait je ne sais quel étrange cantique. Le ciel avait pris un autre sens. Le bleu le définissait et je ne le nommais plus ciel mais le nommais Bleu. Les oiseaux dans les airs prenaient un prix infini. Créatures éternelles, rien ne pouvait les corrompre et leur vol se prolongeait dans des immensités sans fin.
.
Tout cela était à la fois tangible et impalpable, présent et invisible, proche et insaisissable.
.
Je redescendis aussi vite en moi que j'en étais sorti. Je me retrouvai les pieds toujours bien ancrés sur le sol, me réadaptant à la lumière du soleil habituel, qui me parut terne.
(...)
.
.
.
Paul Eluard, in L'Eclat des Blés
.
.
.
.

Sunday, January 6

.
.
.La Clef des Champs, 1936
.
.
A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.
.
A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.
.
Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.
.
.
.
Sophia de Mello Breyner
.
.
.

Tuesday, December 18

.
.
. Les Grands Rendez-Vous, 1947
.
.
.
Meu Deus, aqui estou.
E no mais não repares,
por ser esta noite a Noite que é!
.
Em versos Te rezo.
E no mais não repares,
por ser esta noite a Noite mais calma!
.
- Conduz-me aos mais altos lugares
da minha fé!
.
- Conduz-me aos mais altos lugares
da minha alma!
.
.
.
Rodrigo Emílio, Pequeno Presépio de Poemas de Natal
.
.
.

Saturday, December 15

.
.
..
.
.
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
e mais quotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo.
Teadoro, Teodora.
.

.
.
Manuel Bandeira
.
.
.

Monday, December 3

.
.
. Les Amants I, 1928
.
.
.

Numa esquina de Paris
.
.
Dezenas e dezenas de pessoas passam ininterruptamente ao longo do passeio.
Umas para lá.
Outras para cá.
Umas para cá.
Outras para lá.
Mas cada uma que passa
tem de fazer na esquina um pequeno rodeio
para não se esbarrar com o par que aí se abraça.
Olhos cerrados, lábios juntos e ardentes,
tentam matar a inesgotável sede.
Através dos seus corpos transparentes
lê-se na esquina da parede:
.
DANS CETTE PLACE A ÉTÉ TUÉ
MAURICE DUPRÉ
HÉROS DE LA RESISTANCE.
VIVE LA FRANCE.
.
.
António Gedeão in Linhas de Força, 1967
.
.
.

Friday, November 23

.
.

Le Faux Miroir, 1928

.
.

Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.
.
As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas…
.
Teus olhos imortais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!
.
.
.
Cesário Verde, Lúbricas
.
.
.

Saturday, November 17

Voyeur[ismos]

.
. L'Espion, 1928
.
.
ou o
.
.
tédio das curiosidades satisfeitas
.
.
.
.
.
.

Monday, November 12

verosimilhança

.
. La Lectrice Soumise, 1928

.
.

Todos os bons livros se assemelham no facto de serem mais verdadeiros do que se tivessem acontecido realmente, e que, terminada a leitura de um deles, sentimos que tudo aquilo nos aconteceu mesmo, que agora nos pertencem o bem e o mal, o êxtase, o remorso e a mágoa, as pessoas e os lugares e o tempo que fez.

Se conseguires dar essa sensação às pessoas, então és um bom escritor.
.
.
Ernest Hemingway, in O Bom Escritor
.
.
.

Saturday, October 27

.
.
La Valse Hésitation, 1950
.
.
Dá-me alegria...
Incendeia meu sangue arrefecido!
E depois meu amor...
Depois... deixa-me sonhar...
.
.
Judith Teixeira
.
.
.

Wednesday, October 17

.
. Le Seducteur, 1953
.
.
A viagem fazemo-la num qualquer modesto cargueiro
Existe ainda um porto onde não tivéssemos tocado?
Existe alguma espécie de tristeza que ainda não tivéssemos cantado?
O horizonte que a cada manhã tínhamos pela frente
Não era igual ao que à noite deixávamos para trás?
Quantas estrelas desfilaram à nossa frente
Roçando as águas
Não era cada aurora o reflexo
Da nossa grande nostalgia?
Mas é em frente que vamos, não é verdade?
É em frente que vamos.
.
.
Nâzim Hikmet in Poemas da Prisão e do Exílio
.
.
.

Sunday, October 7

Petits Riens

.
.
Le Mariage de Minuit, 1926
.
.
Mieux vaut n'penser à rien
Que n'pas penser du tout
Rien c'est déjà beaucoup
Ce sont ces petits riens
Que j'ai mis bout à bout
Ces petits riens
Qui me venaient de vous
.
.
Serge Gainsbourg
.
.
.

Sunday, September 30

porque a memória é de pedra

.
. Souvenir de Voyage III, 1951
.
.
O homem ama na terra natal os seus hábitos, se ali reside ou residiu muito tempo; ama a sua casa e o seu agro, se os tem; e ama, sobretudo, a sua infância, que lhe comandará a vida inteira e se amalgama com o drama biológico do envelhecimento e da morte.
.
.
David Mourão-Ferreira
.
.
.

Saturday, September 22

Desvarios

.
. Le Premier Jour, 1943
.
.
Ainda haverá música um dia? Subitamente às vezes penso, um terror absurdo, que é da menoridade, a música, a arte, tudo aquilo em que precisamos de reclinar um pouco a cabeça.
.
.
Vergílio Ferreira
in Alegria Breve
.
.
.

Tuesday, September 18

Marioneta de Trapo

.
.
Entr'acte, 1927
.
.
Se, por um instante Deus se esquecesse do que sou
uma marioneta de trapo e me presenteasse
com um pedaço de vida, possivelmente não diria
tudo o que penso, mas, certamente, pensaria
tudo o que digo.
.
Daria valor às coisas não pelo que valem mas
pelo que significam.
Dormiria pouco, sonharia mais pois sei que a cada
minuto que fechamos os olhos, perdemos
sessenta segundos de luz.
.
Andaria quando os demais
parassem, acordaria quando os outros dormem.
Escutaria quando os outros falassem e gozaria um
bom sorvete de chocolate.
.
Se Deus me presenteasse com um bocado de vida,
vestiria simplesmente, me jogaria de bruços
no solo, deixando a descoberto não apenas meu
corpo, como minha alma.
.
Deus meu, se eu tivesse um coração escreveria meu
ódio sobre o gelo e esperaria que o sol saisse.
.
Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre estrelas
um poema de Mario Benedetti e uma canção de
Serrat seria a sereneta que ofereceria à lua.
Regaria as rosas com minhas lágrimas para sentir a
dor dos espinhos e o encarnado beijo das suas pétalas.
.
Deus meu, se eu tivesse um pedaço de vida.
não deixaria passar um só dia sem dizer às gentes
te amo, te amo.
.
Convenceria cada mulher e cada homem que são
os meus favoritos e viveria enamorado do amor.
.
Aos homens lhes provaria como estão enganados ao
pensar que deixam de se apaixonar quando
envelhecem, sem saber que envelhecem quando deixam
de se apaixonar.
.
A uma criança, lhe daria asas, mas deixaria
que aprendesse a voar sozinha.
.
Aos velhos ensinaria que a morte não chega com a
velhice, mas com o esquecimento.
.
Tantas coisas, aprendi com vocês, os homens...
Aprendi que todo o mundo quer viver no cimo da montanha,
sem saber que a verdadeira felicidade
está na forma de subir a escarpa.
.
Aprendi que quando um recém nascido aperta com a sua
pequena mão o dedo de seu pai, o tem
prisioneiro para sempre.
.
Aprendi que um homem só tem direito de olhar um
outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se.
.
São tantas as coisas que pude aprender com vocês, os homens...
.
.
.
Johnny Welch ou Garcia Marquez
.
a polémica sobre a sua autoria persiste
.
.
.

Thursday, September 13

Por Entre Fios

.
.
Les Objects Familiers, 1928
.
.
.
Há homens que rezam na penumbra
das catedrais dolentes e há outros
que do alto das pontes olham
a escuridão rumorejante das águas.
Há homens que esperam na orla
marítima e outros arrastando-se
no viscoso esterco dos subterrâneos.
Há homens debruçados em pleno azul
e outros que deslizam sobre densos verdes;
há os desatentos na atenção e os que
espreitam atentamente a ocasião.
Há homens por fora e por dentro
do cimento armado, suspensos
das mil ciladas do quotidiano voraz;
de encontro aos muros, às paredes,
ao sol do meio-dia, ao visco da noite,
às sediças solicitações de cada instante.
Há a impotência poderosa da oração
e a obsessão amarga dos suicidas
e, de permeio, os que, porque hesitam,
porque ignoram, porque não crêem,
não oram, nem se suicidam
e se quedam ante a impossibilidade de destrinça
entre o fio da vida e a vida por um fio.
.
.
Rui Knopfli, in O Fio da Vida
.
.
.

Monday, August 27

Diálogos

.
. L'Amour Desarmé, 1935
.
.
.
Espelho, amigo verdadeiro,

Tu reflectes as minhas rugas,

Os meus cabelos brancos,

Os meus olhos míopes e cansados.

Espelho, amigo verdadeiro,

Mestre do realismo exacto e minucioso,

Obrigado, obrigado!
.
.
.
Mas se fosses mágico,

Penetrarias até ao fundo desse homem triste,

Descobririas o menino que sustenta esse homem,

O menino que não quer morrer,

Que não morrerá senão comigo,

O menino que todos os anos na véspera do Natal

Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.
.
.
.
Manuel Bandeira, Lira dos cinquent' anos
.
.
.

Thursday, August 16

Ternas São as Horas

.
. La Ruse Symétrique, 1928
.
.
.
.
Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
de frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada...
.
Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio...
.
Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...
.
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!
.
.
.
David Mourão-Ferreira, Infinito Pessoal ou a Arte de Amar
.
.
.

Friday, August 3

.
.
ilustração
de
infância
.
. Maggie Taylor, Dawnsm
.
.
René Magritte, La Jeunesse Illustrée

.
.
Menino doido, olhei em roda, e vi-me

Fechado e só na grande sala escura.

(Abrir a porta, além de ser um crime,

Era impossível para a minha altura...)

.

Como passar o tempo?...E diverti-me

Desta maneira trágica e segura:

Pegando em mim, rasguei-me, abri, parti-me,

Desfiz trapos, arames, serradura...

.
Ah, meu menino histérico e precoce!

Tu, sim! Que tens mãos trágicas de posse,

E tens a inquietação da Descoberta!

.
O menino, por fim, tombou cansado;

O seu boneco aí jaz esfarelado...

E eu acho, nem sei como, a porta aberta!

.

José Régio. Libertação,in Poemas de Deus e do Diabo
.

Michael Dudok de Wit. Father and Daughter, 2000
.
.
.

Father and Daughter

Direction, Design and Story, Michael Dudok de Wit. 2000

.
.

Michael Dudok de Wit. Father and Daughter, 2000
.

.
Ma jeunesse ne fut qu'un ténébreux orage,
Traversé çà et là par de brillants soleils ;
Le tonnerre et la pluie ont fait un tel ravage,
Qu'il reste en mon jardin bien peu de fruits vermeils.
.
Voilà que j'ai touché l'automne des idées,
Et qu'il faut employer la pelle et les râteaux
Pour rassembler à neuf les terres inondées,
Où l'eau creuse des trous grands comme des tombeaux.
.
Et qui sait si les fleurs nouvelles que je rêve
Trouveront dans ce sol lavé comme une grève
Le mystique aliment qui ferait leur vigueur ?


- Ô douleur ! ô douleur ! Le temps mange la vie,
Et l'obscur Ennemi qui nous ronge le cour
Du sang que nous perdons croît et se fortifie !
.
.
Baudelaire, L'Ennemi

.Maggie Taylor. Sweet Victory

.
.

Sunday, July 29

Limiares

.
. Le Temps Menaçant, 1929 .
.
L'Échelle du Feu, 1934
.
.
Vamos caminhando aos ziguezagues entre o apocalipse e o paraíso perdido, muito perto do primeiro e muito distantes do segundo. Perdidos em sonhos e de sonhos perdidos.
.
.

Rudolf Schlichter
.
.

Tuesday, July 24

. . .

.
.Le Visage du Génie, 1926-7
.
.
Uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior. Caminhar em si próprio e durante horas não encontrar ninguém - é a isto que é preciso chegar.
.
.
Rainer Maria Rilke, in Cartas a Um Jovem Poeta
.
.

Sunday, July 15

da Palavra à Poesia

.
.
Portrait de P.-G. Van Hecke, 1928
.
.
Havia no violoncelo uma poesia austera e pura, uma feição melancólica e severa que casavam com a alma de Inácio Ramos. A rabeca, que ele ainda amava como o primeiro veículo de seus sentimentos de artista, não lhe inspirava mais o entusiasmo antigo. Passara a ser um simples meio de vida; não a tocava com a alma, mas com as mãos; não era a sua arte, mas o seu ofício. O violoncelo sim; para esse guardava Inácio as melhores das suas aspirações íntimas, os sentimentos mais puros, a imaginação, o fervor, o entusiasmo. Tocava a rabeca para os outros, o violoncelo para si, quando muito para sua velha mãe.
.
.
Machado de Assis, in O Machete
.
.

Tuesday, July 10

Utopia, Mestria do Prazer
.
.
Le Thérapeute, 1936
.
"Discutem sobre a virtude e o prazer; mas primária e suprema é a questão sobre a felicidade humana: em que é que se situa, se numa única coisa se em muitas. Ora quanto a isto parecem mais propensos do que seria razoável para a corrente que defende o prazer, enquanto procuram definir a felicidade humana no seu todo ou na parte principal.
Designam por prazer todo o movimento ou todo o estado de corpo ou de alma nos quais o homem, guiado pela natureza, se delicia em viver. Nos prazeres que se reconhecem como autênticos, os utopianos assinalam diversas espécies: uns atribuem-nos à alma, outros ao corpo.
À alma associam o entendimento e o gozo que a contemplação da verdade faz nascer; a isso junta-se a recordação agradável de uma vida bem passada e a esperança sem vacilação de um bem futuro.
Quanto ao prazer do corpo, repartem-no por dois tipos. O primeiro deles será aquele que inunda os sentidos de uma acalmia de plenitude. Quanto a um segundo, gozar de saúde sem entraves de doença; na realidade, se não houver que enfrentar a dor, o bem-estar é já de si uma satisfação, mesmo que a vida decorra sem ocasionar um prazer vindo de fora.

. Le Maître du Plaisir, 1926

.

Abraçam os utopienses, principalmente e em primeiro lugar, os prazeres do espírito (consideram-nos, efectivamente, acima de todos, no topo).
Quanto à beleza, à robustez, à destreza, os utopienses cultivam-nas de bom-grado como verdadeiros dons da natureza que são também aprazíveis. Melhor ainda, como condimentos que tornam a vida aprazível, buscam prazeres que entram pelos ouvidos, pelos olhos, pelas narinas, que a natureza quis que fossem próprios e peculiares do homem (de facto, nenhuma outra espécie de animais se detém a olhar para a elegância e para a beleza, ou se deixa impressionar pelo encanto dos odores, a não ser que seja para distinguir alimentos, nem se apercebe das escalas dos sons e da sua harmonia ou dissonância).
O juízo dos utopienses é também aqui sempre o mesmo: um prazer de menor qualidade não deve criar obstáculo ao de maior qualidade."
.
Thomas Morvs in Vtupia
.
.

Thursday, June 28

Paroles du Rêveur

.

. Attendant l'Impossible, 1928
.
.
I
A quoi tu penses
Je pense au premier baiser que je te donnerai.
.
II

Baisers semblables aux paroles du rêveur
Vous êtes au service des forces inventées.
.

III
Aux rues de petites amours
Les murs finissent en nuit noire
J'aime

Et mes rideaux sont blancs.
.

IV
Sans éclat et douce à son nid
Elle apparaît dans un sourire.
.

V
Le 21 du mois de juin de 1906
A midi
Tu m'as donné la vie.
.
.
Paul Éluard, in Une longue refléxion amoureuse
.
.

Wednesday, June 20

Envelhecer

Les Rêveries du Promeneur Solitaire, 1926
.

A primeira surpresa: agrada-me.
Agora, haja o que houver, algumas coisas
que eram assustadoras deixaram de o ser:
.
por exemplo, não morri cedo. Nem perdi
o meu único amor. Nenhum dos meus três filhos
se viu forçado a abandonar ninguém.
.
Não me digam que esta gratidão é complacente.
Todos nos aproximamos da mesma escuridão
que para mim é o silêncio.
.
Saber isto ainda torna mais vivo
o meu deleite pelas frésias de Janeiro,
pelo café quente e pelo sol de Inverno. Assim
.
dizemos, juntos, num momento de ternura:
cada dia que for ganho à escuridão
é tudo o que podemos celebrar.
.
.
Elaine Feinstein
.
.

Saturday, June 16

Turvas Horas

.
. L'Empire des Lumières, 1954
.
.
Turva hora onde
Principia a noite
E o dia se esconde
.
Hora de abandonos
Em que a gente esquece
Aquilo que somos
E o tempo adormece
.
Nevoenta hora
Hora de ninguém
Em que a gente chora
Não sabe por quem.
.
E tudo se esconde
Nessa hora onde
Por estranha magia
Brilha o sol de noite
E o luar de dia.
.
.
Natália Correia
.
.

Wednesday, June 13

São Rosas

.
.
René Magritte. Le Tombeau des Lutteurs, 1961

.
.
Quem foi que riu na noite silenciosa,
Que o riso deu à noite a forma de uma rosa?
.
.

Salvador Dali. Meditative Rose, 1958

.

E quem chorou depois na noite densa,
Que a rosa se desfez em lágrima suspensa?

.

Natália Correia

.

Sunday, June 10

Há Um Poema...

.

Le Siècle des Lumières, 1967

Há sempre mais um poema triste para sair da noite...
O luar sobe, imperturbável, deste sossego da terra,
o silêncio guarda em si a voz das rochas e dos montes,
o ar é o encontro duma saudade e duma aspiração,
o perfume, o eco dum adeus triste sem palavras nem lágrimas...
As águas do rio pararam, a reflectir mais serenamente umas vagas estrelas,
os barcos são corpos estendidos a sonhar na noite,
as asas dormem escondidas como um segredo,
e as árvores nem têm uma palavra de ternura dos ventos distantes...
E é nesta serenidade que as almas verdadeiramente acordam...
.
.
Alberto de Serpa, Nocturno
.
.

Saturday, June 2

De Coisas Surreais

.
.


Uma pausa, para contar da exposição Surrealista, a acontecer em Londres
.
SurReaL ThiNgS
.
Nascido da ideologia política de Karl Marx e da psicanálise de Freud, o Surrealismo, um dos mais marcantes movimentos de arte do séc. XX, em fantástica mostra. O vocábulo relaciona-se a Apollinaire e a André Breton que, em 1924, o descreve como o movimento que procura mudar as percepções do mundo.
O interior ilusório que, segundo Freud, já não representa espaço de segurança, em exploração dos sonhos e do irracional.
.
.
Serge Diaghilev, 1926, director artístico dos Ballets Russes contrata Ernest e Miró para desenharem o guarda-roupa de Romeu e Julieta.
Porque o ballet foi uma das primeiras esferas a revelar a influência do Surrealismo, a receber, de Chirico.
.
.
Quais figuras de convite, abre a exposição em guarda-roupa, de Le Bal, 1929, Giorgio de Chirico
De Chirico transformando os dançarinos em elementos animados. Paredes, colunas, estátuas, esculturas tornadas vivas por uma noite. Ao centro, uma Sylph, personagem do ballet francês durante o séc. XIX.
.
.
Pintura, joalharia, vestuário e peças outras desfilam nas diferentes salas. Em magia.
O Teatro, o Design, a Moda.
Na pintura, representados Max Ernest, Miró e André Masson, os artistas dos primeiros anos.

De Miró, práticas automáticas que revelam o inconsciente, disse André Berton
“É o mais surrealista de todos nós”
.
Em exposição, People with Stars, 1933
..
Na sala seguinte, Marcel Jean. Panels for a Wardrobe, 1941

Estas portas, painéis do roupeiro, em trompe l'oeil, que fez para o seu apartamento em Budapeste, quando aí trabalhava como desenhador para uma empresa têxtil, foram capa do seu livro “The History of Surrealist Painting”, 1959.
A exposição diz de um trabalho de curadoria incrível. Frente às portas, um banco onde demorarmos, e as nuvens surrealistas em passagem, pela obra e pelo tecto, levadas pelo vento, em suave movimento. De ficar e ficar, em deleite.
..
No canto esquerdo da mesma sala, o biombo que serviu de livro de visitantes na Galeria Ratton, Paris. Assinado por pintores e escritores, exibe a maior parte das assinaturas dos surrealiastas que aí expuseram e de que, lamentavelmente, não possuo imagem para reproduzir.
.
De Magritte, a surpresa de haver encontrado a pintura do post que abriu este blog, La Reproduction Interdite, 1937, homenagem a Edward James. Foi este, o principal mecenas dos surrealistas, em particular de Magritte e Dali, financiador, ainda, da revista Minotaure.

O quadro representa o seu protector, Edward James projectando no espelho o seu inverso. Sobre a lareira, o livro Adventures d’Arthur Gordon Pym de Edgar Allan Poe, séc. XIX, escritor do macabro, um dos preferidos deste grupo. O livro é a única figuração no quadro, cujo reflexo no espelho é correcto, algo que se torna quase impossível de notar quando apenas olhamos uma pequena reprodução.
.
.
Magritte continua em La Jeunesse Illustrée, 1937, parada de objectos familiares ao pintor, em sequência poética, como se estes fossem palavras numa frase. A primeira versão desta pintura foi feita para a casa de Londres de Edward James (35, Wimpole st), que se divia entre esta cidade e Sussex, sua terra natal.
. .
e, entre outros mais, escolhi La Voix du Sang, 1947, que virei a aproveitar para um post posterior
.
.
Outro trabalho lindissimo, de Dorothea Tanning
.
Eine Kleine Nachtmusik, 1943, cujas cores se tornam impossíveis de reproduzir tais quais
. .
De Dali, entre vários, destaco The Hand, 1930
.

.
e A Couple With Their Heads Full of Clouds, 1936, baseado nas silhuetas do casal a rezar de Jean-François Millet’s, Angelus, 1857-9
. .
Outros nomes...
.
do surrealismo inglês, Leonora Carrington. Penélope, 1960
.
.
o austríaco Hernert Bayer. The Lonely Metropolitan, 1932
. .
e, porque as primeiras religiões e a mitologia clássica foram, frequentemente, exploradas pelos surrealistas, o quadro abaixo,
Paul Delvaux. La Vénus Endormie, 1944.
.
Influenciados pelas interpretações de Freud das antigas lendas, e a exploração de Nietsche do orgiástico culto de Dionisius, muitos destes artistas viravam-se para temas míticos de modo a criarem cenários psíquicos.
.
.
A exposição apresenta, ainda, peças de vestuário, capas de catálogos Vogue, amostras de tecidos estampados, objectos de uso comum e peças de ourivesaria, como esta abaixo, absolutamente fantástica
.
Dali. Ruby Lips Brooch (ouro, rubis e pérolas), 1949
.
.
Óbvio que esta escolha é subjectiva, são os meus eleitos, e, para que no espaço não me alongue, ainda assim, muitos ficam de fora.
.
Um mundo de sonho aberto ao sonho, Surreal Things, Victoria and Albert, Londres. Até 22 de Julho.
.
De coisas surreais,
porque a fantasia faz falta
porque faz falta sonhar
.
.