Thursday, May 17

Valores

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.Valeurs Personnelles, 1952.
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Um amigo meu, homem superior, considera que a eternidade é uma manhã e dez mil anos um simples abrir e fechar de olhos. O sol e a chuva são as janelas da sua casa. Os oito pontos cardeais as suas avenidas. Caminha sem destino. Inútil se torna procurar as suas pegadas. A sua casa tem o céu por tecto e a terra por leito. O seu único pensamento é o vinho. Nada mais, aquém ou além, o preocupa.
O seu modo de viver chegou aos ouvidos de dois respeitáveis filantropos: o primeiro, um jovem nobre; o outro, um famoso letrado. Foram visitá-lo e com olhos furiosos e ranger de dentes, agitando as mangas das suas vestes reprovaram vivamente a sua conduta. Falaram-lhe dos ritos e das leis, do método e do equilíbrio. E as suas palavras zumbiam como um exército de abelhas. Entretanto o seu interlocutor encheu um copo e bebeu-o de um trago. Depois sentou-se no solo com as pernas cruzadas, encheu de novo o copo, afastou a barba e recomeçou a beber até que, a cabeça inclinada sobre o peito, caiu num estado de inditosa inconsciência, apenas interrompido por relâmpagos de semilucidez.
Os seus ouvidos não teriam escutado a voz do trovão, os seus olhos não teriam reparado numa montanha. Cessaram frio e calor, alegria e tristeza. Abandonou os seus pensamentos. Inclinado sobre o mundo contemplava o tumulto dos seres e da natureza, como algas flutuando sobre um rio...
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Lieu Ling (Séc. III), in A Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro
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5 comments:

Saramar said...

O mundo jamais aceitou os que não se curvam às leis da conveniência.
A liberdade assusta.

Belo texto, complementado pela imagem, perfeita.

beijos e bom final de semana para você.

Anonymous said...

Quem foge do "estabelecido", do socialmente correcto, entra, mesmo sem querer, num certo mundo marginal, em que normalmente se colocam os "artistas", termo simpático, sinónimo em muitas mentes de "loucos".
Encaram o mundo á sua maneira, pouco ou nada lhes importando se a massa esmagadora e pensante que os rodeiam, aplaude ou vaia.
São normalmente os do "contra".
Os rebeldes.
Camus costumava dizer que rebelde é aquele que diz que não.
E Alegre diria mais tarde que rebeldes sempre haverá, pois "há sempre alguém que diz não".

Fazer parte da maioria é muito confortável.
Dizer "não" é só para quem arrisca. Mas assume.

Belo texto de Lieu Ling, que acertou em pleno ao prever que este texto "era para o futuro".

teresamaremar said...

É, o social dita normas, fazer parte da maioria, não contestar é cómodo e fácil, até em sociedades democráticas que, a seu modo, governam carneirinhos.
Fáceis são, também, os rótulos, esses de loucura.
A rebeldia, a irreverência e o diferente provocam desconcerto.

Obrigada por ambos os comentários.

Fernando Palma said...

Que texto tão inspirante. Já até guardei o nome do autor e livro.
Muita sabedoria e criação a cada passagem. É daqueles textos que começamos a ler distraídos e depois paramos em susto para reler varias vezes.

Nem preciso dizer que gostei muito..

Atpe mais!

teresamaremar said...

Olá Fernando,

se gostou deste excerto, leia "A Montanha da Alma" de Gao Xingjian. Vai gostar.